O artigo “Criar para mudar: o outro lado de Cannes” é uma bela tentativa de resgatar a nobreza da nossa profissão. Sua proposta — de que a publicidade pode, sim, ser um agente de transformação — é inspiradora. E, em muitos sentidos, verdadeira. É inegável que boas campanhas têm o poder de tocar corações, sensibilizar consciências e até influenciar políticas. Mas talvez seja justamente por admirarmos esse potencial que vale o esforço de colocar as coisas em perspectiva.
A autora, Isabela Levy, cujo trabalho e agência eu sou fã, se apoia num argumento que, embora encantador, merece ser tratado com mais cautela: a ideia de que as empresas estariam mais preparadas ou mais dispostas que os governos para promover mudanças estruturais na sociedade. Essa crença, muito difundida em festivais internacionais, tem o mérito de mobilizar o setor privado para além do lucro — mas, se levada ao pé da letra, nos afasta de um ponto central da convivência democrática: são os Estados, e apenas eles, que detêm a legitimidade para assegurar direitos universais.
Tomemos como exemplo a iniciativa mencionada no artigo, de uma seguradora que oferece cobertura para vítimas de violência doméstica. Trata-se, sem dúvida, de um gesto louvável — e, do ponto de vista estratégico, também bastante compreensível. Uma ação como essa é garantia de PR instantâneo e massivo: foram 118 menções na mídia e um aumento de 9% em novos contratos. Ou seja, mesmo que o atendimento a 121 casos no primeiro mês tenha representado um custo, é bem provável que o ganho reputacional e financeiro tenha compensado — e muito — o investimento. Isso não invalida a boa intenção, mas evidencia que, mesmo em campanhas de impacto social, as engrenagens do mercado continuam girando conforme os interesses do capital.
Esse dado reforça uma reflexão necessária: ao colocar nas mãos da iniciativa privada a responsabilidade por preencher lacunas sociais tão profundas, corremos o risco de reforçar desigualdades. Afinal, empresas podem até desejar o bem comum, mas operam sob regras de mercado — e o mercado, sabemos, não costuma ser gentil com os mais vulneráveis. No setor de seguros, por exemplo, o risco financeiro é um fator determinante: quanto mais comum o sinistro, maior o interesse em evitá-lo. Basta observar o comportamento das operadoras de saúde no Brasil, que muitas vezes agem mais para restringir do que para ampliar o acesso. Que força divina seria capaz de influenciar gestores e acionistas das principais companhias de seguro a assumir os custos de uma ação semelhante à da AXA? Esse cenário só é possível através de politicas públicas, não de campanhas premiáveis.
Ao colocar nas mãos da iniciativa privada a responsabilidade por preencher lacunas sociais tão profundas, corremos o risco de reforçar desigualdades
Isso não diminui o mérito da comunicação. Ao contrário: reforça seu papel complementar. Campanhas criativas podem, sim, iluminar temas invisibilizados, criar empatia, pressionar autoridades, acelerar mudanças culturais. Mas elas não devem se sobrepor à política pública — e muito menos substituí-la.
Em determinado momento do artigo, a autora se pergunta: “Será que estamos prontos? No meio de um mundo em crise climática, política e social, será que a publicidade vai continuar se contentando em ser só inspiradora?” — uma pergunta potente, mas que carrega, em si, uma ironia inevitável. Justamente pela dimensão e gravidade dessas crises — com democracias à beira do colapso, genocídios escancarados e catástrofes climáticas em cadeia — é preciso reconhecer os limites da publicidade como força de enfrentamento. Não apenas por sua natureza simbólica, mas sobretudo pela sua histórica hesitação em assumir posições políticas relevantes no debate público, seja por parte de pessoas físicas ou jurídicas. E isso se dá, em boa medida, pelo temor de perder empregos, contratos, clientes e faturamentos bilionários.
Talvez o nosso maior desafio, como profissionais da criação, não seja acreditar que podemos fazer o papel do Estado, mas reconhecer onde nossa força realmente se manifesta: na capacidade de sensibilizar, mobilizar, emocionar. Quando entendemos essa distinção, não enfraquecemos nosso propósito — ao contrário, o tornamos mais potente, mais coerente e, sobretudo, mais respeitoso com a complexidade da transformação que tanto desejamos.
Criar para mudar é, sem dúvida, um chamado bonito. Mas que seja, acima de tudo, um convite à responsabilidade. Porque mudar, de verdade, exige mais do que boas ideias: exige compromisso com o que é de todos. E isso, por definição, é campo do público.