Muitos palcos, cinco noites e 30 troféus máximos depois, dá-para traçar um retrato bastante nítido da comunicação que é vista como o auge da criatividade no planeta. A análise a seguir cruza todas as conferências com os presidentes de júri, suas métricas favoritas e as ideias que conquistaram Leões de ponta a ponta na Croisette, em Cannes Lions 2025. Confira nossa cobertura completa no canal dedicado, incluindo os insights de profissionais convidados. Se quiser conferir todos os GPs, comece por aqui.
1. Serviço antes da propaganda
Quando a campanha resolve um problema concreto (e não apenas fala dele) o Leão vem naturalmente.
Caso | Problema real que resolveu |
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AXA — “Three Words to Help Women Escape” | Falta de suporte imediato para vítimas de violência doméstica: a seguradora incluiu “and domestic violence” na apólice residencial, passando a cobrir transporte, abrigo seguro e assistência jurídica. |
Consul — “A Forma Mais Eficiente de Pagar”* | Endividamento de famílias de baixa renda que precisam trocar eletrodomésticos antigos: a economia de energia do novo aparelho paga a própria parcela, sem entrada nem juros. |
Indian Railways — “Lucky Yatra” | Alta evasão de tarifa nos trens indianos: cada bilhete passou a valer como cupom de loteria diária, incentivando a compra do tíquete oficial. |
Ziploc — “Preserved Promos” | Desperdício de cupons vencidos durante a inflação em alta: consumidores podem revalidar qualquer cupom expirado ao comprar Ziploc, gerando alívio financeiro imediato. |
*sei de toda a polêmica envolvendo esse case e suas supostas manipulações, porém, para fins do que o júri levou em consideração como comunicação efetiva, ele consta aqui na análise
Esses quatro exemplos mostram como a lógica “produto/serviço que resolve” superou a “mensagem que promete”, alinhando impacto social direto a resultados de negócio.
“Perguntávamos: ‘Esse é o primeiro dominó de um movimento?’”, disse Judy John, presidente do júri, sobre a ideia da apólice de seguros da AXA, ganhadora do GP de Titanium, prêmio máximo do festival.
“Buscávamos soluções reais para problemas reais. Criatividade lançada no mundo como serviço.”
– Tom Beckman, presidente de PR Lions
2. Propósito de longo prazo vira vantagem competitiva
Tanto Dove quanto Apple provaram que a mesma ideia, rodada ano após ano, acumula valor cultural e comercial.
- Dove “Real Beauty” ganhou Glass + Creative Strategy graças a 20 anos de investimento contínuo em autoestima. Para KR Liu (Google) “a indústria precisa de faróis, não de fogos de artifício”.
- Shot on iPhone levou Creative Effectiveness ao mostrar como uma plataforma “infinitamente renovável” sustenta vendas de duas casas decimais há dez anos, elogiou Andrea Diquez (GUT).
3. Inclusão e acessibilidade como craft-premium
Não “é bom ter”: pode ser critério decisivo.
- Caption With Intention (Design + Digital Craft + Brand Experience) moderniza legendas de 1971, cobre 196 idiomas e, nas palavras de Tara Ford (Droga5/Accenture Song), “vai fazer a antiga closed caption parecer TV preto-e-branco”.
- Nigrum Corpus (Industry Craft) reescreve o atlas médico a partir de depoimentos de pacientes negros.
4. Dados e tecnologia viram motor da ideia
Planilhas ficaram no bastidor; no palco estão os algoritmos que criam a experiência.
- Dove Real Beauty Redefined hackeia o feed do Pinterest para trocar imagens IA por fotos reais. Dan Clays (Omnicom Media Group) celebrou “a mídia como força criativa”.
- Amazon Greenventory usa IA + drones para mapear 400 km² de floresta em 6 meses (25 anos de trabalho humano). Josy Paul (BBDO India): “Trabalho bom informa; Trabalho excepcional transforma.”
- Sounds Right credita sons da natureza no Spotify e paga royalties à conservação. Courtney Brown Warren (Kickstarter) classificou o modelo como “uso radicalmente novo de tecnologia existente”.
5. Entretenimento é a nova propaganda
Os cases mais comentados competem com Netflix, TikTok e Twitch pela sua noite de sono e geram ROI.
- Hyundai “Night Fishing”: curta sci-fi filmado só com sensores do IONIQ.
- Mercado Livre “Call of Discounts”: Neymar disfarçado no Call of Duty libera descontos (+150 % downloads).
- Clash of Clans “Payback Time”: haters de Haaland convidados a destruir a vila digital do craque — “ódio que converte”, brincou o júri.
“É a prova de que uma montadora pode entregar entretenimento tão bom quanto qualquer estúdio de streaming e as pessoas nem percebem que estão vendo um anúncio.”
David Rolfe — presidente do júri de Entertainment Lions
6. Humor desarma tabus (e gera doação, procura e share)
Viagra, herpes e violência doméstica mostraram que temas delicados podem (e devem) ser abordados de forma inesperada.
“Alegria como arma contra o estigma é o antídoto perfeito para a desinformação em saúde.”
David Ohana — diretor de criatividade da ONU e porta-voz do júri que concedeu o Grand Prix for Good
7. Comércio criativo e ROI instantâneo
Não basta awareness: tem que fechar caixa.
- GoDaddy “Act Like You Know” dobrou tráfego e agregou US$ 1,6 bi em valor de mercado com um e-commerce criado ao vivo no Super Bowl.
- Preserved Promos de Ziploc foi chamada por Gabriel Schmitt (Grey) de “ideia simples, escalável e que dói onde a prateleira dói”.
“Queríamos cases que nos deixassem orgulhosos da indústria. Este faz isso mil por cento: é simples, escalável e gera valor real exatamente onde a prateleira dói no bolso.”
Gabriel Schmitt — Global CCO da Grey e presidente do júri de Creative Commerce
8. Colaborações de alto nível reescrevem patrocínios
Luxo, esporte e sustentabilidade ganharam novas regras.
- LVMH x Paris 2024: medalhas com ferro da Torre Eiffel, baús Louis Vuitton para varas de salto — “luxo como farol, não logotipo”, definiu Mathilde Delhoume Debreu (LVMH).
- Channel 4 “Considering What?” colocou o tema capacitismo no horário nobre e, segundo Kate Stanners, “desafia qualquer um a esquecer o comercial”.
No fim das contas
- Criatividade útil deixou de ser nicho e virou mainstream. Quem não entrega serviço tangível fica fora do palco.
- Consistência estratégica é tão premiada quanto a grande sacada do ano.
- Dados, IA e craft caminham juntos: algoritmo sem emoção é planilha; emoção sem dado é fogo de artifício.
- ROI explícito entra na mesa do júri: de vendas a doações, passando por busca e share-of-market.
Com o festival encerrado, fica claro que a próxima década pertence a ideias que integram propósito, plataforma e performance — não como slogans, mas como sistemas vivos, ajustáveis e mensuráveis. Cannes Lions 2025 fechou as cortinas confirmando: criatividade não é só mensagem; é modelo de negócios, ferramenta de inclusão e linha de frente do crescimento sustentável.
Inteligência Artificial: a penetra na festa
O novo “plus-one” da indústria: entre a euforia das cúpulas e o desconforto das bases
AI não ganhou uma categoria própria em 2025, mas foi a acompanhante onipresente em beach clubs, villas e painéis lotados. A mudança de tom em relação a 2023–24 é clara: saiu o “poderia” e entrou o “já está”. Nas palavras de Don McGuire, CMO da Qualcomm, que usa o Writer para economizar 2400 horas/mês:
“Passamos da promessa e do medo para a aplicação prática.”
1. Aplicações concretas e métricas na mesa
Como a IA apareceu | Exemplos premiados | Vozes & números |
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Reparando os próprios danos – usar algoritmo para consertar vieses ou criar utilidade social | Real Beauty Redefined for the AI Era (Dove) reajusta o feed do Pinterest ≠ imagens tóxicas · Amazon Greenventory mapeia 400 km² em 6 meses e paga comunidades | “Em vez de temer a IA, a marca a usou para resolver o problema que ela mesma criou.” — Dan Clays, Omnicom Media Group |
Negócios movidos por modelo algorítmico – IA gera receita, não só redução de custo | Sounds Right transforma sons da natureza em royalties permanentes · Consul liga economia de energia ao financiamento do produto | “Uso radicalmente novo de tech existente, com impacto perpétuo.” — Courtney Brown Warren, Kickstarter |
Produção deflacionada – rapidez & preço que viram mantra de boardroom | Comercial Puma 100 % IA (Monks) pronto em 10 dias “por centenas de milhares”; Qualcomm poupa 2 400 h/mês com Writer | “O que custava milhões, agora sai por centenas de milhares.” — Sir Martin Sorrell, S4 Capital |
Craft humano como antídoto – quanto mais IA, maior o valor do feito-à-mão | Telstra (stop-motion) e Channel 4 (mise-en-scène) vencem Film/Film Craft | “Em meio à febre da IA, foi revigorante ver algo feito à mão, com amor e paciência.” — Ali Ali, Film Craft |
Clima de euforia na cúpula, ansiedade na base | Havas batiza bots de “teammates” e investe € 400 mi; Meta lança gerador de ads “sem agência se quiser” · 75 % das agências bancam IA do próprio bolso (4As/Forrester) | “Passamos da promessa e do medo à aplicação prática.” — Don McGuire, Qualcomm
“Criatividade seguirá fundamentalmente humana.” — Marisa Thalberg, Catalyst Brands |
Ética e transparência pedidas nos bastidores | Jurados de Creative Data exigiram “checklist de ética” para IA (origem dos dados, bias check); peças sem documentação caíram fora do shortlist | (Relato off-record de 2 presidentes de júri) |
“É para acelerar, não substituir agências”, repetiram executivos da Meta — mas a entrelinha (“sem agência se você não quiser”) ficou no ar.
2. Lideranças entusiasmadas × base ansiosa
- Nos after-parties, criativos júnior brincavam sobre “serem demitidos pelo colega GPT antes do próximo Cannes”.
- A “nova era dourada” dita por Sorrell pode ser o apocalipse para quem não está no topo da pirâmide tecnológica.
- 4As + Forrester divulgaram pesquisa: 75 % das agências já usam IA e 75 % bancam o custo do próprio bolso, sem repassar a clientes. Jay Pattisall chamou isso de “alergia perigosa ao valor” para modelos comerciais.
3. Produção em choque de custos
Sir Martin Sorrell (S4 Capital) exibiu o comercial da Puma criado 100 % por IA:
“Levava meses e custava milhões; agora sai em 10 dias por centenas de milhares.”
Tanzeen Syed (General Atlantic) lembrou:
“A IA de vídeo hoje é a pior que jamais será.”
Ou seja, a deflação de custo/tempo tende a se aprofundar — ótimo para CMOs pressionados por BYDs de US$ 10 mil, apocalíptico para produtoras tradicionais.
4. Criatividade “fundamentalmente humana”?
Marisa Thalberg (Catalyst Brands) mantém fé:
“Criatividade seguirá única e humanamente nossa, mesmo que a forma de expressá-la mude.”
O contraponto veio de Hollywood: artistas como Reese Witherspoon e JB Smoove defenderam o papel de roteiristas e diretores para garantir a “emoção que o prompt não alcança”.
5. Governança e ética (ainda) incipientes
Nos bastidores, vários presidentes relataram que pediram aos finalistas provas de transparência algorítmica — desde fontes de dados até salvaguardas anti-viés. Trabalhos que não apresentaram essa documentação “cairam na primeira hora de shortlist”, segundo relato off-record de dois jurados de Creative Data.
6. O que muda na leitura dos Grand Prix?
- IA como remédio para problemas que ela mesma cria
- Dove ajusta algoritmo do Pinterest para combater padrões tóxicos.
- Amazon Greenventory usa visão computacional para salvar floresta.
- Craft humano valorizado porque escasso
- Telstra (stop-motion) e Channel 4 (mise-en-scène de cinema) foram premiados justamente por mostrar “dedo humano” em meio ao hype generativo.
- Modelo de receita, não só de economia
- Sounds Right cria royalties perpétuos para sons da natureza.
- Consul liga machine-learning à forma de pagamento, não à segmentação.
7. Próximos passos (rumores para 2026)
- Generative Creativity Lions — organização estuda categoria dedicada.
- Checklist público de IA ética — documentação pode se tornar item obrigatório.
- “Battle of Craft” ampliada — quanto mais IA vira commodity, maior o prêmio àquilo que só mão humana faz (ou parece fazer).
“A discussão não é mais se vamos usar IA, mas como e por quê.”
— KR Liu, Google / presidente do júri Glass Lions
Ao contrário do que alguns analistas de sofá acusaram, Cannes Lions 2025 não ignorou IA; enquadrou-a. Só subiu ao pódio quem provou que o algoritmo:
- Corrige um mal ou cria real utilidade;
- Abre fluxo de receita nova ou mede ROI tangível;
- Não sacrifica craft, emoção e responsabilidade.
Para 2026, a aposta é de mais transparência, mais deflação de custo e maior prêmio ao que o prompt ainda não atinge — seja uma legenda que faz surdos sentirem emoção, seja um stop-motion que faz júri chorar.